O Homem e a Montanha Lendária
Esta é a intrigante história do homem que passou sua vida desafiando a Montanha Lendária: quem a viu diz que era impossível sequer ver seu topo. Não há notícias sobre qualquer pessoa que tenha chegado lá.
Segundo os escritos antigos, no topo desta montanha há todos os tipos de tesouros, incluindo a vida eterna.
Porém, muitos se matavam quando desistiam de continuar tentando sem nunca atingir seu objetivo. Outros, com medo desta frustração fatal, se acorrentaram na base para jamais correr o risco do fracasso. Alguns decidiam se soltar das correntes quando já era tarde demais, outros se esqueciam da corrente e fazia da base da montanha o seu mundo raso e seguro.
Mas havia um homem singular. Ele possuía uma compulsão por escaladas cada vez maiores. Quanto mais se elevava, mais o ar ficava rarefeito, mais pessoas tinha que deixar pra trás. Ele não conseguia parar.
Sua condição é ainda mais curiosa: mal caía na armadilha, que o fazia voltar para a base, ele voltava a escalar. Quando tinha que voltar, encontrava velhos amigos, amigos que, infelizmente não puderam apreciar a paisagem de alguns pontos altos da Montanha. Esses amigos não caiam, mas também não subiam. Alguns, em pontos mais altos, não tinham coragem para admirar a paisagem nem a profundidade do caminho já percorrido. Mas ouviam atentamente o curioso homem que descrevia a paisagem de rara beleza.
Esse curioso homem era conhecido como o homem livre.
O homem livre, porém, está condenado. Condenado a subir até o absurdo e retornar sempre ao ponto de partida. Ele não tem escolha. Ele sabe disso: é sua maldição.
Sempre que voltava, não era reconhecido. Seus amigos o indagavam sempre sobre a paisagem, e não entendia como esse estranho homem o tratava com tanto entusiasmo, quase eufórico diante deles. Quando voltava a subir, distanciando deles, era impossível ignorar a dor de não ter sido reconhecido. Mas ele prosseguia. Ele nunca parava.
Seu rosto sangrava, seu corpo tremia... Mas sua mente não hesitava: voltava seu olhar para onde deveria ser o topo da montanha e voltava para sua escalada. O homem livre está condenado. Condenado a seguir sozinho. Ele não tem outra escolha: a escolha de ficar não é dele.
O homem livre chora. Chora e limpa o rosto enquanto escala. Enquanto dói. Enquanto se eleva. Ele sente saudade do que deixa pra trás, mas sua coragem o faz olhar para baixo: ele enxerga tudo com uma perspectiva diferente. Até seus maiores problemas se apequenam: ele se eleva e o que o faz olhar pra trás acaba sumindo e e ele acaba escapando do seu poder gravitacional. O homem livre chora. Chora e não para de escalar.
A natureza do homem é escalar. E o homem livre não ignora essa força interior que exige essa escalada incessante. Essa força ativa é sua essência. O homem livre é um homem que obedece: obedece a si mesmo. O homem livre está condenado: condenado a ser livre.
Os homens acorrentados julgam que a escalada incessante é vazia, sem sentido. Por isso, temível. O homem livre abraça a ideia mesmo assim e prossegue sem hesitar. O sentido da corrente que usam é, para o homem livre, uma forma de fazer a alma secar e o corpo se esvaziar: anulando a dor de estar vivo pelo medo do vazio que às vezes rasga a alma exposta do homem livre.
A lenda do homem livre se estabeleceu, ofuscando a própria montanha, quando notaram algo extremamente perturbador nele: por trás do sangue e suor em seu rosto, havia um sorriso no canto da boca.
De onde vinha esse sorriso que deixava todos tão desconcertados? Não seria a liberdade, sua pena, não seria o vazio, sua cela? Por certo, dizia um sábio tardio, ele não encontrou sua felicidade no topo da montanha, esse prêmio é o inalcançável. Ele, portanto, encontrou na própria escalada sua felicidade. Mas não foi bem assim: ele não encontrou. Ele "fez" da própria escalada sua felicidade. Isso o sábio tardio não percebeu lá de baixo.
De dentro de sua cela, passou a amar sua pena e, por isso, tornou-se um homem livre: o inevitável para ele era também sua vontade. Era compelido a fazer o que queria.
Do vazio dos quadros nas paredes que encontrava quando descia, ele criou as mais sublimes pinturas de tudo que via dos pontos mais altos.
E ele fez de sua própria vida a sua obra-prima.
Roderictus.