[Filosofia] A primeira frase filosófica da história parte 2 de 2
Na parte um, sobre a primeira frase filosófica da história, mostramos quem disse, qual o contexto e o raciocínio que inaugurou a filosofia. Nesta segunda parte, tem uma perspectiva ainda filosófica, mas será possível vislumbrar um pouco do nascimento da ciência, também. E tudo isso tem a ver com a escolha da água como a substância que representa a causa primeira. Quer entender o motivo de Tales ter escolhido a água e por que a frase não é tão simples como aparenta?
Se você caiu de paraquedas neste post, recomendo fortemente que leia antes a parte 1:
https://www.roderictus.com/a-primeira-frase-filosofica-da-historia-parte-1-de-2/
No post anterior, que eu sei que você leu, vimos que Tales de Mileto ao buscar a causa infinita, que era chamada de “physis”, concluiu que “Tudo é água”.
Com certeza, não foi a primeira vez que essa frase foi dita. Mas é a primeira vez que foi dita com a intenção de entender a totalidade da realidade e de maneira racional. Certamente, alguém antes de Tales perguntou a um vendedor o que continha nas garrafas que estava vendendo e o vendedor respondeu “tudo é água”. O vendedor é filósofo por causa disso? É claro que não. A frase é a mesma, mas o significado é completamente diferente. Tudo depende do contexto.
Em tentativas mais sérias de reduzir o alcance da frase de Tales, ainda na Antiguidade, já apontaram antecessores, incluindo o próprio Homero que comentamos no post anterior, quando tratam do Oceano e Tétis, respectivamente, pai e mãe das coisas. Além de crenças antigas que diziam que os deuses juravam sobre o Estige (rio dos Infernos e, portanto, água), que é exatamente aquilo que é primeiro e supremo (o princípio). Este rio foi nomeado em homenagem à irmã de Aquiles, já que era filha de Tétis, também. Mas ter um Oceano como pai das coisas, ou deuses fazendo juras para um rio estão longe de serem pensamentos filosóficos.
Se você ainda se recorda do raciocínio desenvolvido no post anterior, perceberá que há uma diferença bem nítida: Tales baseia suas afirmações usando a razão, os outros, pelo contrário, se baseiam na imaginação e no mito.
Não há aqui nenhuma intenção de menosprezar o conhecimento religioso, mítico ou mesmo de estar usando o adjetivo “filosófico” como elogio. São apenas métodos cognitivos diferentes, com intenções diferentes, apenas isso. Falar que uma picanha não é uma cerveja, não é nenhum demérito ou elogio à picanha. Você pode, inclusive, comer uma picanha e beber uma cerveja: uma coisa até pede a outra, não acha? A intenção aqui é justamente não confundir e beber a picanha e comer a cerveja. Só para complicar este meu exemplo, aqui na Bahia, curiosamente, tomar uma bebida alcoólica é chamado de “comer água”.
Então, é preciso perguntar qual é a ideia de água que Tales tinha.
Como Tales estava focado na causa infinita, ele resolveu eleger a substância que mais se comportava como causa, que seria capaz de uma natureza criadora, capaz de dar origem à vida. Algo que seja a fonte, o sustentáculo e a foz de todas as coisas. Além de ser um elemento que poderia adquirir qualquer forma e estado (sólido, líquido e gasoso). Ele tinha uma convicção que a nutrição de todas as coisas era úmida, as sementes tinham natureza úmida e a secura era a morte.
E quando Tales diz que “tudo é água”, não se trata do elemento H2O que bebemos. Presumir que o criador da filosofia e da ciência teria uma conclusão tão ingênua é, no mínimo, precipitada.
Ele tinha convicção que o elemento que trazia a vida era a água.
É preciso entender o que significa “tudo” e o que significa “água” e o que acontece com essas palavras quando estão na frase “tudo é água”.
“Tudo” é uma referência à realidade objetiva. A physis é a água totalizante que dá origem a tudo, incluindo a água que bebemos, ou seja, essa água que conhecemos é, como todas as outras coisas, uma manifestação da água totalizante.
O cientificismo esvazia a reflexão mais profunda e ignora tudo que está além da apreensão dos fenômenos e nos conduz a uma interpretação materialista da frase de Tales, materialista no sentido de “matéria”, não no sentido de alguém apegado a bens materiais, consumista. Tales era naturalista, mas no sentido antigo. A água como princípio coincidia com o divino, apesar de uma concepção nova de deus, impessoal. Era uma concepção racional, diferente da poética e fantástica explicação politeísta da época.
Tales previu eclipses, ele media as pirâmides só pelas sombras delas: quem você acha que é o Tales do Teorema de Tales que até hoje é ensinado nas escolas?
Se pararmos para pensar, a ciência contemporânea aponta que a vida, de fato, teve origem em lagos e oceanos primitivos da Terra, uns 4 bilhões de anos atrás. Que nossa atmosfera é 99% de origem biológica: o céu é feito de vida. Mais da metade do nosso corpo é feito de água. Mais um ponto pra Tales!
Tales ainda chegou a dizer “tudo está cheio de deuses”. Se você acha que agora ele foi contraditório, que está tratando de politeísmo, é porque se esqueceu de adequar a frase ao pensamento de Tales. Quando ele diz que tudo está cheio de deuses, lembrando que ele já tinha dito que tudo é água (a substância primordial, a divina), ele quer dizer que tudo está permeado do princípio originário, como o princípio originário é vida, tudo tem vida.
Mas aqui, novamente, com relação à parte da vida, você pode achar que é outra incoerência com a realidade, já que você sabe que pessoas morrem e já viu uma pedra e se perguntar: “como assim tudo tem vida?”. Mas lembre-se que quando queremos saber o que alguém está dizendo, devemos interpretar, decodificar, que significa entender o que a pessoa está tentando transmitir e, especialmente de textos de pessoas de outras épocas e culturas, mais se faz necessário tentar antes compreender o que a pessoa entende de cada palavra dita. Traduzir, ainda que já esteja no nosso próprio idioma.
Voltando para “tudo está cheio de deuses” dita por Tales, que encontrava vida em tudo, podemos usar uma analogia com algo da ciência contemporânea. O que ele quer dizer com vida é o movimento que há em qualquer coisa, nas pedras, no defunto, afinal se você observar microscopicamente, os átomos estarão lá em movimento, tanto na pedra quanto no defunto, ambos parecem imóveis, inanimados a olho nu. Não estou dizendo que Tales já compreendia a noção de átomos, elétrons. Foi apenas uma analogia com a ciência contemporânea para clarear a ideia de que é possível encontrar vida em tudo, no sentido que Tales dava para a palavra vida. Na época de Tales, inclusive, ele usava o ímã como prova da animação universal das coisas. O que normalmente chamamos de vida, tentando aproveitar o conceito de Tales, nada mais é que uma vida mais complexa, e a morte seria apenas diminuição brusca desta complexidade, não ausência de vida. Pois, em tudo, eu disse tudo, está repleto de deuses. Como sempre, suas conclusões tem lastro com a realidade.
A grande questão é como do Uno se origina o Diverso, como da causa infinita, única, só vemos, pelo contrário, manifestações de coisas plurais e passageiras. Tudo é Uno, mas só vemos o Diverso. O Universo se torna uma palavra até poética, uno e diverso. Ora, tudo é um. Tales concluiu que para além das mudanças aparentes, algo permanece. Este assunto vai ocupar a mente dos vários filósofos que o sucederam e trataremos disso em outros vídeos. Não precisam se preocupar com isso agora.
Aristóteles, discípulo de Platão, que, por sua vez, era discípulo de Sócrates, vai resumir bem tudo que discutimos desde o vídeo anterior:
“A maior parte dos que por primeiro filosofaram [...] afirmam que aquilo de que todos os seres são constituídos e aquilo de que derivam originariamente e em que terminam por último, é elemento e é princípio dos seres, enquanto é uma realidade que permanece idêntico mesmo com a transmutação de suas afecções. E, por esta razão, creem que nada se gere e que nada se destrua, pois tal realidade sempre se conserva. [...] deve haver, pois, alguma realidade natural [...] da qual derivam todas as outras coisas, enquanto ela continua a existir imutável. [...] Tales, iniciador deste tipo de filosofia, diz que tal princípio é a água [...], deduzindo sua convicção indubitavelmente da constatação de que o alimento de todas as coisas é úmido, e que até o calor gera-se do úmido e vive no úmido. Ora, aquilo de que todas as coisas são geradas é, justamente, o princípio de tudo. Ele deduz, portanto, sua convicção deste fato e do fato de que as sementes de todas as coisas têm natureza úmida e a água é o princípio da natureza das coisas úmidas.”
Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, interpretando a frase “tudo é água”, busca entender o que Tales queria dizer.
“A filosofia grega parece iniciar-se com uma noção desarmônica, a saber, com a proposição de que a água seria o primórdio e o ventre materno de todas as coisas: é realmente necessário deter-se neste ponto e proceder com seriedade? Sim, e por três motivos: primeiramente, porque a sentença profere algo acerca do primórdio das coisas, em segundo lugar porque ela o faz sem imagem ou fabulação e, finalmente, porque nela, ainda que apenas em forma embrionária, obteve-se o pensamento: tudo é um. [...] graças ao terceiro motivo, considera-se Tales como o primeiro filósofo grego. - Tivesse ele dito: da água se faz terra, então teríamos apenas uma hipótese científica; falsa, porém dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. Com a apresentação dessa noção de unidade, por meio da hipótese da água, Tales não apenas superou o patamar reduzido dos conhecimentos físicos de seu tempo, mas passou de um salto por sobre eles.”
Neste ponto, você deve estar se perguntando: Como nosso querido Cascão, reagiria à conclusão de Tales que “tudo é água”? E não é que temos esta resposta? Não sei se vocês conhecem a coleção Graphic MSP que são gibis da Turma da Mônica voltada para o público adulto, aquele adulto que acompanhava os clássicos quando criança e querem ter este momento nostálgico com histórias mais maduras. São ótimos e, obviamente, compro todos que lançam.
No primeiro gibi do Cascão desta coleção, a família dele ganha uma viagem de cruzeiro que, obviamente ele recusa acompanhar e aceita, meio a contragosto, ficar na casa de seu excêntrico tio Gerson. Um figurão aficionado por água, trabalhava tipo na Sabesp (Embasa aqui na Bahia), e tem uma fala totalmente baseada na reflexão de Tales, finalizando, inclusive, com “Tudo é água”. Eu não fui autorizado a mostrar trechos, mas faço a propaganda, mesmo assim. Essa parte está entre as páginas 23 a 25. Colocarei o link do gibi no final.
Depois deste mergulho na primeira frase da história da filosofia, gostaria de saber se, sobre este assunto, ficou ainda alguma dúvida e, a depender, poderei até fazer um vídeo extra.
Neste canal, não vamos falar apenas de filosofia, mas também de literatura, música, direito e economia… basicamente tudo que vier à mente e eu achar que tenho algo para contribuir.
Enquanto não sai o próximo post, nos vemos no instagram e twitter (@roderictus).
Um forte abraço!
Livros usados como fonte de pesquisa:
1 - História da Filosofia - Volume 1 - Filosofia Pagã Antiga: Filosofia Pagã Antiga (Volume 1)
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2 - Filosofia: Antiguidade e Idade Média - Vol I: Antiguidade e Idade Média (Volume 1
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3 - A filosofia na era trágica dos gregos
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4 - Cosmos
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5 - Graphic Msp: Cascão – Temporal
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