[Filosofia] A primeira frase filosófica da História (parte 1 de 2)
Qual é a primeira frase da filosofia?
E quem disse, quando, onde e por quê?
TRECHO DA ILÍADA:
“[...] será este um poderoso juramento: a justiça por mando de Zeus sobrevirá um dia aos filhos dos Aqueus o desejo de terem Aquiles, a todos eles. E nesse dia não conseguirás tu, apesar do sofrimento, socorrê-los, quando muitos por Heitor matador de homens caírem chacinados. E tu morderás dentro de ti o coração de raiva, porque em nada honraste o melhor dos Aqueus."
[...]
“Pátroclo obedeceu ao querido companheiro e trouxe da tenda Briseida de lindo rosto, dando-a para a levarem. Eles voltaram para junto das naus dos Aqueus. E com eles foi a mulher, contrariada.” Mas logo Aquiles rompeu a chorar e foi sentar-se longe dos companheiros, na praia junto ao mar cinzento, olhando para o mar cor de vinho. E estendendo as mãos, à mãe amada orou com afinco:”
‘Mãe, já que me deste à luz para uma vida tão curta, honra deveria o Olímpio ter me concedido, Zeus que troveja nas alturas. Mas agora em nada me honrou. Pois o filho de Atreu, Agamêmnon de vasto poder, desonrou-me. Tirou-me o prêmio, pela própria arrogância.’
Assim falou, vertendo lágrimas; e ouviu-o a excelsa mãe, sentada nas profundezas do mar junto ao ancião, seu pai. Rapidamente, como a bruma, emergiu do mar cinzento: sentou-se à frente do filho enquanto vertia lágrimas e acariciou-o com a mão.”
[...]
“[...] emergiu de manhã cedo da onda do mar e subiu ao rasgado céu, ao Olimpo. Encontrou Zeus que vê ao longe sentado longe dos outros, no píncaro mais elevado do Olimpo de muitos cumes. Sentou-se junto dele e com a mão esquerda lhe agarrou os joelhos, enquanto com a direita o segurava sob o queixo. Em tom de súplica dirigiu a palavra a Zeus Crônida soberano:
‘Zeus pai, se entre os imortais alguma vez te auxiliei com palavras ou atos, faz que se cumpra esta minha prece: honra o meu filho, aquele que acima de todos os outros está destinado a vida curta. Pois agora Agamêmnon, soberano dos homens, o desonrou, tirando-lhe o prêmio pela arrogância. Mas mostra-lhe tu a recompensa, ó conselheiro Zeus Olímpio! Concede a primazia aos Troianos, até que os Aqueus honrem o meu filho e lhe paguem com honraria devida."
[...]
“Os outros deuses e os homens, senhores de carros de cavalos, dormiram toda a noite. Só a Zeus não tomou o sono suave, mas ponderava em seu espírito como poderia trazer honra a Aquiles, matando muitos junto às naus dos Aqueus. No espírito lhe surgiu então a melhor deliberação: enviar um sonho nocivo ao Atrida Agamêmnon.”
Estes trechos da Ilíada, o livro mais antigo da literatura que se tem conhecimento, o maior de todos os épicos, juntamente com sua continuação, a Odisseia, mostra a influência direta que os deuses têm na vida humana. Veja que a ninfa do mar, Tétis, mãe de Aquiles, pede a Zeus que ajude os inimigos de seu filho, isso mesmo, seus inimigos, para que os aliados dele percebam que não deveriam ter desonrado seu maior guerreiro ao ponto dele se retirar da batalha. Só assim, perto da derrota, seus aliados dariam conta da importância de Aquiles na guerra contra os troianos. Zeus até hesita em fazer o que Tétis pede, mas acaba cedendo e manda um sonho ao comandante da expedição grega sugerindo uma estratégia que sabe que dará errado.
A história de Helena de Tróia, da Ira e Força de Aquiles, da Inteligência de Ulisses e dos inúmeros deuses que interferem direta e indiretamente nos fatos, era tratada com o mesmo peso que uma bíblia, com a diferença que essa história não tinha o controle de sacerdotes, logo, não tinha dogmas rígidos. Mas era a base da explicação da realidade do povo grego.
Tudo começou a mudar com o nascimento de um grande sábio em 624 a.C na cidade de Mileto, região da Jônia, uma antiga colônia grega, onde hoje está localizada a Turquia.
Seu nome era Tales. Como nasceu em Mileto, ficou conhecido como Tales de Mileto.
Tales de Mileto viveu no período em que as poesias de Homero e de Hesíodo ainda fervilhavam.
Apesar de hoje serem consideradas obras clássicas de alta erudição, as obras de Homero e Hesíodo representavam a cultura popular, transmitidas oralmente inclusive para crianças de qualquer grupo social. Então Tales ouvia de Atena, Hades, Poseidon muito mais que a gente assistindo anime na TV. Porque ele vivia mergulhado numa história muito mais profunda, uma verdadeira religião pública.
As causas de todos os fenômenos naturais eram interpretadas como ações de cada um dos inúmeros deuses: Zeus, apesar de ser o caçula do titã Cronos com a deusa Reia, era, nesta época, chamada de pai dos deuses, era a causa dos raios, Poseidon comandava os mares e assim por diante.
Aqui, temos já dois pontos fundamentais que irão influenciar o pensamento de Tales:
deuses não eram apenas seres superpoderosos, eram, principalmente, as explicações das causas dos fenômenos naturais
e não vieram do nada, sendo concebidos, muitas vezes, exatamente como os seres humanos.
Repetindo: explicações para as causas e a rejeição da origem do nada. A relação causa e efeito é essencial, incluindo o fato da causa também ser causada.
Os deuses eram semelhantes a nós, com a diferença de serem ampliados e idealizados. Eram forças naturais ou abstrações humanas (como a justiça), só que personificadas em figuras antropomórficas, ou seja, com características humanas.
Como já disse antes, por não ter um guardião dessas histórias, pois estava diluída no seu povo, não era um dogma. Foi quando Tales foi tomado pelo desejo de ir além.
É como uma criança que de tanto perguntar sobre os “porquês dos porquês dos porquês”, percebesse que seu incansável pai continuaria respondendo sem nunca chegar à resposta que tanto a aflige.
Tales queria entender toda a realidade, saber qual é o princípio de todas as coisas. Ele queria encontrar o primeiro “porquê”, a causa primeira. Uma explicação racional e que não fosse um mero jogo de palavras para preencher o buraco da ignorância. Queria usar palavras que remetiam à realidade.
Ela tinha que elevar o pensamento, para sair da esteira dos infinitos porquês. Ora, essa constatação é de um fato que ele não poderia ignorar, que a causa da causa da causa e assim ao infinito era um dado da realidade, não é fruto de sua imaginação, então, a partir de sua percepção de algo inegavelmente real, ele poderia pensar sobre a realidade.
Se é infinita essa cadeia de causas, então necessariamente existe algo que sempre existiu, existe e existirá que sustente essa ordem inquebrável da realidade e que dá origem a todo o resto (que são coisas finitas que tem início, meio e fim). Algo imutável (pois a regra que “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” nunca mudou), algo eterno (no sentido que sempre existiu, sem começo ou fim) e capaz de gerar e abarcar tudo que existiu, existe ou existirá, ou seja, uma causa infinita. Não é apenas a causa da causa, porque toda causa da causa também foi causada. Tales queria encontrar a causa das causas.
Se infinitas causas existem, então, necessariamente, existe uma causa infinita.
“A causa infinita é a causa das infinitas causas”.
Roderictus
E só pode ser uma causa infinita, sob pena de ser limitada pela existência de outras causas, então, nenhuma delas seria infinita.
Se você realmente entendeu o raciocínio que descobre o princípio das causas, parabéns! Você está preparado para ouvir a primeira frase filosófica da história.
Antes uns esclarecimentos para contextualizar ainda mais a frase de Tales.
Esse princípio que ele buscava era chamado na época de "physis", que significa “natureza”. “Natureza” no sentido de realidade, não no sentido moderno. É daí também que vem a expressão “física”, inclusive. Graças a este grande sábio chamado Tales, teremos a filosofia. Ele que também é, por muitos, considerado o pai da ciência.
Essa busca pela causa primeira, o faz também ser considerado como um pensador originário. E, finalmente, a frase que inaugurou o pensamento originário que futuramente será chamada de filosofia foi:
“Tudo é água”.
Tales de Mileto
Uma frase aparentemente simples mudou a história da humanidade, especialmente, no Ocidente. Por que essa frase é tão profunda e revolucionária? Por que Tales escolheu a água para representar a unidade, a causa primeira, a totalidade da realidade?
Ficou curioso? Abordarei na parte 2. Deixarei também o link dos livros que utilizei como fonte.
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Este texto é a versão escrita do vídeo abaixo:
https://youtu.be/yIM-ARSBcvs
Enquanto não sai o próximo vídeo, vamos interagir no instagram e twitter (@roderictus).
Livros usados como fonte de pesquisa:
1 - Caixa Homero – Ilíada & Odisseia
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2 - História da Filosofia - Volume 1 - Filosofia Pagã Antiga: Filosofia Pagã Antiga (Volume 1)
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3 - Os pensadores originários
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4 - Como ler os Pré-socráticos
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Um forte abraço!